Até hoje as pessoas tentam
entender os estranhos acontecimentos que se desenrolaram em Rio Dulce e sua
incipiente urbe, no ano do senhor de 1066.
Para alguns, os fatos que serão
aqui descritos tinham uma inexplicável ligação com a passagem do cometa Halley,
naquele ano, pelos céus do nosso planeta.
O corrupto suserano senhor
daquele feudo e incipiente urbe – e sua corrupta família – estavam ameaçados de
perder o poder, pelo descontentamento cada vez maior da ralé. Também pudera: os
impostos reais não estavam sendo usados para amenizar o sofrimento dos
miseráveis, mas para aumentar o luxo e a devassidão do alcaide, de sua família
e de seus castelões aduladores. O próprio rei havia publicado um edital em que
reconhecia que as contas da administração do alcaide não condiziam com a
realidade del pueblo.
Por essa razão, sentia-se no ar o
cheiro de rebeldia, a insatisfação da ralé com seu corrupto administrador.
É nesse ponto que se iniciam os
estranhos acontecimentos que passo a narrar.
Mesmo com todo o descrédito do
alcaide e seu governo, certo dia dois representantes da ralé anunciaram estar
ao lado do administrador corrupto. Ninguém acreditou, pois dias antes aquela
dupla havia criticado duramente o governo do alcaide.
Camponeses, artesões e milhares
de pobres vassalos ficaram tristes – e pasmos – com a atitude dos ex-líderes da
ralé.
Depois foram os filósofos. Os
homens que, armados da razão, criticavam o luxo e a luxúria da família do
alcaide e seus aduladores, abdicaram da argumentação e a filosofia virou
filosofice. O discurso reto, lógico, passou a tortuosas elucubrações: ninguém
entendia mais o que agora falavam.
O próximo a esquecer suas
palavras da véspera e a se aliar ao alcaide foi o beato, homem que até então se
acreditava pessoa humilde e de muita fé. O beato afastou-se do grupo de fieis
da ralé que lhe pediam auxílio e lhe acompanhavam e passou a ser visto nas
sombras das muralhas do castelo (tentando esconder sacos reduzidos de gêneros
alimentícios, os quais já não dividia com seus ex-companheiros de fé).
E, enquanto essas pessoas que
outrora haviam sido porta-vozes dos vassalos e dos humildes se deixavam
corromper pelo poder, o alcaide e seus guardas intensificavam a perseguição aos
que se opunham aos seus desmandos. Os perseguidos mantinham-se solidários em
sua dor e mesmo sob tortura continuavam expressando sua indignação contra os
abusos do alcaide.
Acreditou-se por um tempo que o
desvario dessas personagens, se deixando corromper – e, o que é pior, por
bagatelas, como se soube depois – se devia à passagem do cometa. Sim, pois o cometa Halley, que ainda não
tinha esse nome, havia passado algumas semanas antes. E o astro, desconhecido e
alvo de opiniões controversas, era facilmente associado ao fim dos tempos. Concluiu-se, logo, que a corrupção de todos
aqueles ex-membros da ralé, que dias antes se opunham ao desgoverno daquele
senhor de baraço e cutelo, se devia ao medo do apocalipse.
Se devia, mas não se justificava,
pois antes de se venderem ao alcaide, os porta-vozes da ralé faziam uso (ou
fingiam fazer) da fé, da razão e do bom senso. O dinheiro, esse terrível
proxeneta, os fez abandonar a fé, a razão, o bom senso e os escrúpulos que
porventura tinham, para viver na imediata expectativa de uma nova
Sodoma-e-Gomorra.
O alcaide foi deposto pela plebe.
O cometa Halley não trouxe o
apocalipse.
Quanto aos ex-membros da ralé
convertidos ao poder, seus filhos, netos e bisnetos conviveram por muito tempo
com a vergonha de suas nefastas ações, pois embora a humanidade estivesse
cansada (e hoje mais que nunca), a dignidade era e continua sendo um valor – e
um dos bens mais valiosos para muitos daqueles que vivem tão somente da sua
força de trabalho.
Desenho: Jô Oliveira - Burgomestre Leo Bardo
Desenho: Jô Oliveira - Burgomestre Leo Bardo
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