quarta-feira, 11 de julho de 2012

Corruptos


Até hoje as pessoas tentam entender os estranhos acontecimentos que se desenrolaram em Rio Dulce e sua incipiente urbe, no ano do senhor de 1066.
Para alguns, os fatos que serão aqui descritos tinham uma inexplicável ligação com a passagem do cometa Halley, naquele ano, pelos céus do nosso planeta.
O corrupto suserano senhor daquele feudo e incipiente urbe – e sua corrupta família – estavam ameaçados de perder o poder, pelo descontentamento cada vez maior da ralé. Também pudera: os impostos reais não estavam sendo usados para amenizar o sofrimento dos miseráveis, mas para aumentar o luxo e a devassidão do alcaide, de sua família e de seus castelões aduladores. O próprio rei havia publicado um edital em que reconhecia que as contas da administração do alcaide não condiziam com a realidade del pueblo.
Por essa razão, sentia-se no ar o cheiro de rebeldia, a insatisfação da ralé com seu corrupto administrador.
É nesse ponto que se iniciam os estranhos acontecimentos que passo a narrar.
Mesmo com todo o descrédito do alcaide e seu governo, certo dia dois representantes da ralé anunciaram estar ao lado do administrador corrupto. Ninguém acreditou, pois dias antes aquela dupla havia criticado duramente o governo do alcaide.
Camponeses, artesões e milhares de pobres vassalos ficaram tristes – e pasmos – com a atitude dos ex-líderes da ralé.
Depois foram os filósofos. Os homens que, armados da razão, criticavam o luxo e a luxúria da família do alcaide e seus aduladores, abdicaram da argumentação e a filosofia virou filosofice. O discurso reto, lógico, passou a tortuosas elucubrações: ninguém entendia mais o que agora falavam.
O próximo a esquecer suas palavras da véspera e a se aliar ao alcaide foi o beato, homem que até então se acreditava pessoa humilde e de muita fé. O beato afastou-se do grupo de fieis da ralé que lhe pediam auxílio e lhe acompanhavam e passou a ser visto nas sombras das muralhas do castelo (tentando esconder sacos reduzidos de gêneros alimentícios, os quais já não dividia com seus ex-companheiros de fé).
E, enquanto essas pessoas que outrora haviam sido porta-vozes dos vassalos e dos humildes se deixavam corromper pelo poder, o alcaide e seus guardas intensificavam a perseguição aos que se opunham aos seus desmandos. Os perseguidos mantinham-se solidários em sua dor e mesmo sob tortura continuavam expressando sua indignação contra os abusos do alcaide.
Acreditou-se por um tempo que o desvario dessas personagens, se deixando corromper – e, o que é pior, por bagatelas, como se soube depois – se devia à passagem do cometa.  Sim, pois o cometa Halley, que ainda não tinha esse nome, havia passado algumas semanas antes. E o astro, desconhecido e alvo de opiniões controversas, era facilmente associado ao fim dos tempos.  Concluiu-se, logo, que a corrupção de todos aqueles ex-membros da ralé, que dias antes se opunham ao desgoverno daquele senhor de baraço e cutelo, se devia ao medo do apocalipse.
Se devia, mas não se justificava, pois antes de se venderem ao alcaide, os porta-vozes da ralé faziam uso (ou fingiam fazer) da fé, da razão e do bom senso. O dinheiro, esse terrível proxeneta, os fez abandonar a fé, a razão, o bom senso e os escrúpulos que porventura tinham, para viver na imediata expectativa de uma nova Sodoma-e-Gomorra.
O alcaide foi deposto pela plebe.
O cometa Halley não trouxe o apocalipse.
Quanto aos ex-membros da ralé convertidos ao poder, seus filhos, netos e bisnetos conviveram por muito tempo com a vergonha de suas nefastas ações, pois embora a humanidade estivesse cansada (e hoje mais que nunca), a dignidade era e continua sendo um valor – e um dos bens mais valiosos para muitos daqueles que vivem tão somente da sua força de trabalho.

Desenho: Jô Oliveira - Burgomestre Leo Bardo

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