sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Onde está o amor?

Gilcênio Vieira Souza

Disseram-me ontem que o Amor morreu.
Uns afirmam que seu corpo teria sido encontrado em meio aos destroços provocados pela queda de um míssil.
- Erramos o alvo - tentou justificar fria e laconicamente um diplomata.
Outros dizem que, na verdade, o Amor foi encontrado morto por um catador de lixo, que avisou às autoridades. De olhos abertos, solícitos de piedade, o corpo encolhido. Dormira na rua; morreu de frio.
Alguns divergem dessas versões. Ele teria morrido sem sofrer tanto, dizem. Após jogar dominó com os companheiros de asilo, recolheu-se contente ao quarto. De manhã, na hora do café, sentiram sua falta. Continuava na cama. Na boca, um sorriso. Num dos olhos, estranhamente, uma lágrima parada.
- Morreu em paz - foi o comentário.
A família não compareceu ao enterro. Por falta de tempo, talvez.

Discute-se, porém, a possibilidade d'Ele não ter morrido.
Não estaria passando bem, é verdade. Mas resistiria bravamente às maquiavélicas tentativas de exterminá-lo da face da Terra.
Desconfia-se que algumas pessoas estariam tratando de seus ferimentos num abrigo antimíssil. E que, apesar de quase não saírem à luz do dia, e o alimento ali ser escasso, o Amor rejuvenescera suas esperanças. O Amor teria afirmado, serenamente, que a guerra só lhe dava mais forças para continuar vivo, resistindo sorrateiramente nos corações humanos.
Há também a suspeita de que inúmeras pessoas compartilham com Ele do calor da noite. E Ele inflama seus corações de generosidade e de um corajoso otimismo.
Acredita-se que há um bom número de lares que não O expulsaram do seu convívio. Nessas famílias, o Amor continua encarando sem alarde as emoções que lhe tocam: rindo, chorando, olhando, gozando, entristecendo... Nocauteando com um humor fino e peculiar as forças adversas: ódio, inveja, rancor...

Não. O Amor não morreu.
Vive dias difíceis, sem dúvida. Mas pulsa. Pulsa teimosamente.
E as ondas do seu pulsar atingem ouvidos e corações sensíveis.
Organiza-se subversivamente em catacumbas, como os primeiros cristãos. Questiona o poder e seus representantes, cujo ódio ao povo transparece em todos os atos. Esse povo que só pede algumas migalhas de amor, nada mais.
O amor está vivo sim. Pode estar pensativo, pouco à vontade, preocupado, inquieto em seu imo. Filosofa: como unir de novo o ser humano à sua mãe Terra; como organizar um governo onde o Ministério do Amor seja o mais importante dos ministérios; como espalhar aos quatro ventos a idéia, esquecida, espezinhada, de que a fraternidade é que é o óbvio, não a guerra.
Silencias um pouco. Ouves. Ousando levantar a voz contra a anti-música das guerras e chacinas, bocas sussurram planos para a eternidade e se beijam.
Ouves. Um balbuciar de criança e o mistério do seu sorriso.
Ouves. São planos comuns que braços sofridos fraternalmente tentarão erguer. Estão com fome. Mas sonham.
Tudo isso só prova uma coisa: o Amor não morreu.

Gilcênio, 17/05/1999.