quinta-feira, 24 de maio de 2007

Arredonda a nota aí, fessô!

Gilcênio Vieira Souza

Querido Professor:


Tem coisas que o senhor não sabe sobre mim.

Não sabe, por exemplo, que, assim como o senhor, eu estou me adaptando aos novos tempos da educação.

Logo que começou o ano letivo, procurei o diretor da escola e me informei sobre o currículo. Ele me explicou as “diretrizes” (foi essa palavra mesmo que ele usou) sobre a educação no Brasil e o que elas dizem sobre o currículo escolar.

Eu sei, professor, que o senhor é craque nesse e em outros assuntos que dizem respeito ao ensinar-aprender. Portanto, não vou falar nisso, pois quem sou eu para tanto? Vou continuar apenas relatando algumas coisas que aprendi e uma coisa que não consigo entender.

Assim, professor, aprendi que o senhor gostaria que eu desenvolvesse certas habilidades e atingisse determinadas competências.

Descobri também que existem duas idéias: uma chamada interdisciplinaridade e outra chamada contextualização, que estão sendo aplicadas em nossa escola – o diretor que falou.

Ele me falou também que a escola pretende me preparar para o “exercício da cidadania”, segundo a lei 9394/96. Ele procurou a cópia da lei para me mostrar, mas não estava em sua gaveta.

Mas, tudo bem. Eu fui no cyber, entrei no google e consegui o texto da lei 9394/96, que tem como nome completo: “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. E, realmente, está lá, no artigo 2º, falando sobre o “exercício da cidadania”.

Novos tempos, certo professor? Uma “nova realidade educacional”, foi o que disse o diretor.

Então, professor, por que é que o senhor disse que eu vou ficar reprovado por meio ponto? Deixa de ser mão de vaca, véi!

Arredonda a nota aí, fessô!


Santa Inês, 24 de maio de 2007.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Maria

Gilcênio Vieira Souza

- O senhor tem certeza que era ela?

- Era ela, tenho certeza.

- O senhor já conhecia ela?

- Eu já tinha visto ela pela BR...

- O senhor só tinha visto ou já transou com ela?

- Transar, assim, não foi bem uma transa não...

O motorista insistia que era Maria, possibilidade que o delegado se recusava aceitar.

Maria nasceu há 17 anos, num lugar chamado Pindura Saia, município de Pio XII, cujo nome é uma homenagem ao papa que, pelo que hoje sabemos, calou-se diante da perseguição aos judeus e protegeu nazistas, ao fim da 2a guerra mundial; não estranhemos essa homenagem: a maioria dos homenageados com nomes de cidades, ruas, obras, são pessoas pouco escrupulosas.

O pai, Maria jamais conhecera. Um homem, a quem o vulgo batizou simplesmente de Zé Grande, engravidou a mãe de Maria e abandonou-a três meses depois para, segundo o dito cujo, ganhar muito dinheiro no garimpo. Não se sabe até hoje quanto ele ganhou, se é que ganhou, ou se perdeu o principal, a vida, que, por motivos óbvios, ainda é o bem mais importante que possuímos (para alguns, o único bem).

Mesmo esperançosa de um dia abrir a porta e encontrar à frente o sorriso dourado de Zé Grande, a mãe de Maria – que também se chamava Maria – juntou-se a um outro homem rude, cortador de juquira, pau pra toda obra, como se costuma dizer, de nome Manoel, mas só conhecido e reconhecido de todos pelo apelido de Pé de Cabra. Com ele, teve mais três filhos, dois meninos e uma menina.

Maria ajudava a mãe a cuidar dos meio-irmãos, a plantar, quebrar coco, fazer carvão e o que mais fosse preciso. Quando Maria tinha seus doze anos, o dito Pé de Cabra, seu padrasto, quando sozinho com ela passou constantemente a cercá-la de falsos carinhos e palavreado ainda mais hipócrita e, por último, a ameaçá-la de morte, caso a menina revelasse para a mãe o assédio que sofria.

Transtornos tais Maria viveu até os 16 anos, quando, ao ser violentada pelo padrasto, chamou a atenção da mãe e outras pessoas mais com gritos e lágrimas. Apesar do flagrante, a mãe acreditou ou fingiu acreditar na inocência de Pé de Cabra, que insinuou que a menina vivia seduzindo-o há algum tempo, com o feitiço do sexo que desabrochava.

A mãe assistiu, sem atitude, o padrasto expulsar Maria de casa, semi-nua e sem nem mesmo um chinelo no pé.

O resultado é que a menina virou prostituta de beira de estrada. E, enganada por alguns clientes que, ao final da transa jogavam para ela uma nota de 1 real (e olha que ela cobrava a mísera quantia de 5 reais), e também por ter aceito aquele valor em dias em que o estômago falava mais alto, Maria se transformou em motivo de chacota entre as colegas de difícil vida fácil, que passaram a chamá-la de rapariga de 1 real.

Poucos meses depois de cair nesse destino sombrio, Maria engravidou. E, no 7º mês de gravidez, foi levada às pressas para o hospital, sofrendo hemorragia.

O médico de plantão não estava e uma das enfermeiras que a atenderam mandou que parasse de gritar, pois, segundo a insensível criatura, “na hora de fazer, não pensou nisso”.

É triste ser lacônico ao descrever as circunstâncias em que vida e morte passam a ter um limite efêmero, mas, em resumo, Maria morreu.

Daí o delegado não acreditar na história contada pelo caminhoneiro, dizendo ser Maria a moça que aparecera na cabine do seu caminhão, perguntando:

- Cadê o meu dinheiro?

O homem declarou ter caído da cabine, com o susto, pois a porta do motorista estava aberta, e desmaiou, não sabendo exatamente por quanto tempo ficara desacordado. Ao acordar, descobriu que todo o seu dinheiro tinha sido levado.

Esse foi o primeiro caso. Contudo, outros relatos já apareceram, conforme as declarações de motoristas vários que percorrem a BR 316 no trecho entre as cidades de Pio XII e Santa Inês.

Todos insistem que a mulher que os atemoriza, chegando repentinamente como que do nada, e leva o dinheiro que trazem consigo,

é Maria...