Não posso dizer que herdei de meu pai esse gosto pela leitura. Ele nunca foi um leitor exemplar. Lembro, porém, que ele adorava ler a Bíblia. Passava horas em silêncio com a Bíblia nas mãos. Nada o distraía. E, diferente da minha mãe, ele não usava a Bíblia como fonte de exemplos edificantes. Simplesmente lia. O que se passava entre ele e as sagradas escrituras é um mistério.
Meus amigos estranharam que eu tenha dedicado à memória de meu pai o prêmio literário que ganhei. Por ter sido ele leitor de um único livro – mesmo que esse livro tenha a importância que a Bíblia tem – meus amigos concluem que meu pai não teve influência decisiva para que eu gostasse de ler e escrever.
Em parte eles têm razão, mas não podemos esquecer aquelas coisas entre o céu e a terra que a nossa vã sabedoria não alcança.
Eu nunca lhes falei, por exemplo, que meu pai gostava muito de escrever. Sentava-se à mesa e rabiscava não-sei-o-quê em seu pequeno caderninho. Não que fosse uma atividade diária. Ele fazia isso geralmente quando estava mais sério que o normal. Pensativo, lá estava ele sozinho fazendo anotações. Minha mãe não o atrapalhava, não falava com ele nessas horas.
Como criança, minha curiosidade raramente tinha um significado maior que o interesse momentâneo. Assim, nunca me perguntei muito sobre que coisas meu pai escrevia.
Nossa vida não era fácil. Meu pai vendia panelas. Percorria a cidade, povoados, cidades próximas, empurrando o carrinho cheio de panelas, vendidas geralmente à prestação. Minha mãe reclamava, porque as pessoas demoravam muito a pagar.
Eu tinha vergonha da profissão de meu pai, até o dia em que, na escola, Dona Tereza, professora de português, dava uma aula em que nós, alunos, tínhamos que falar da profissão de nossos pais. Quando eu falei que meu pai vendia panelas, alguns colegas sorriram timidamente. Apenas Gustavo, um menino que mexia com todo o mundo, continuou sorrindo descontroladamente e repetindo:
- Vendedor de panelas!
Dona Tereza interrompeu-o com uma pergunta:
- Gustavo, você gosta de comer?
E ele:
- Adoro!
A professora:
- Em que é que sua mãe faz a comida?
Gustavo:
- Na panela, ué!
E ela:
- E se não fosse o vendedor de panelas, como é que você ia comer?
Ele ficou sem resposta, diante do inteligente novelo socrático da professora e da fuzarca da turma, que ria da sua cara. E eu perdi a vergonha da profissão de meu pai.
Aos dezoito anos, resolvi sair de casa. Fui morar e trabalhar em outra cidade, apesar dos protestos de minha mãe. Meu pai não disse nada.
Com apenas cinqüenta anos, meu pai morreu do coração. Voltei correndo para casa e cheguei a tempo para o enterro. Minha mãe estava inconsolável. Meu irmão mais novo estava muito revoltado. O choro dele misturava-se a palavras de ódio contra os homens, contra Deus, contra a sociedade.
Meu pai não possuía bens. A única coisa que ele deixava para a família era a casa, conquistada com suor, depois de muito trabalho e muita economia.
Passados alguns meses, minha mãe me perguntou se eu queria o caderninho de anotações de meu pai. Claro! E ela me deu um caderno de páginas amareladas e caligrafia impecável. Meu pai escrevia com invejável elegância.
E ali estava, nas minhas mãos, parte da história do meu pai e de seus pensamentos e sentimentos. Que nome posso dar ao seu caderninho? Vou chamá-lo de “caderno dos sonhos”. Nele estavam os sonhos do meu pai, não aqueles tidos durante o sono, mas suas metas, seus planos, seus desejos. Lá, eu fiquei sabendo, por exemplo, que durante anos ele desejou comprar um velocípede para mim, sonho que só foi realizado quando eu não era mais criancinha (o velocípede seria o xodó do meu irmão caçula). Descobri também o quanto meu pai sacrificou-se para pagar o terreno onde construiria nossa casa.
Mas há também no caderninho sonhos que meu pai jamais conseguiu realizar, alguns, coisas aparentemente simples, como fazer uma viagem com minha mãe ao interior da Bahia, para tentar descobrir onde estão os pais da minha mãe (é que ela foi criada por uma tia, falecida pouco depois que meus pais se casaram).
Não consegui segurar a vontade de chorar, diante das revelações trazidas pela caligrafia segura de meu pai. Não era nenhuma obra-prima; o caderno de meu pai não viria alterar o rumo da História, mas recompunha uma nova rede de significados à nossa história particular de vida. Sobre ele não seriam escritos tratados literários, mas é inegável que pulsava ali a força da palavra, o poder da escrita, porque continham o que toda grande obra literária deve conter: humanidade.
Por isso, hoje, se me perguntarem qual era profissão de meu pai, digo, com orgulho e desembaraço:
- Vendedor de panelas e escritor!
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